7 de fevereiro de 2016

Não entres manso nessa noite escura / Do not go gentle into that good night

Para o meu pai e para o meu padrasto.

Recriação poética de "Do not go gentle into that good night" de Dylan Thomas.

*

Não entres manso nessa noite escura,
A velhice deve arder em fúria até ao final do dia;
Grita, grita contra o cair da negrura.

Embora os homens sábios, no seu fim, saibam certa a escuridão que se afigura,
Porque das suas palavras o raio não nascia,
Não entres manso nessa noite escura.

Homens bons, despedindo-se os últimos, gemendo pela alvura 
Com que os seus gestos fracos poderiam ter dançado em verde baía,
Grita, grita contra o cair da negrura.

Homens ferozes que capturaram e cantaram o sol em voadura,
e aprenderam, tarde demais, que sofriam apenas pela sua via,
Não entres manso nessa noite escura.

Homens graves, próximo da morte, vêem sem figura
Que olhos cegos também podem brilhar como estrelas e alegria,
Grita, grita contra o cair da negrura.

E tu, meu pai, aí na triste altura,
Amaldiçoa-me, abençoa-me agora com o teu olhar feroz, e peço na minha liturgia
Não entres manso nessa noite escura.
Grita, grita contra o cair da negrura.

Dylan Thomas, 1951.



8 de dezembro de 2015

A definição violenta da Europa




A caracterização dessa noção de "identidade europeia" sempre se provou muito difícil, sobretudo em tempos de paz. 

Se, por um lado, listas de autores (Dante, Petrarca, Camões, Shakespeare, Ronsard, Racine, Dostoiévski, Kafka...), distanciados no tempo e no espaço, se reportam à mesma matriz cultural (os modelos clássicos gregos e latinos modulados por conceitos judaico-cristãos originais), por outro lado, sobretudo na última década, vemos uma Europa de costas voltadas, não obstante as pantomimas encenadas nas instituições da União Europeia.

No entanto, essa mesma "identidade europeia" tem-se vindo a reforçar e definir reactivamente aos ataques terroristas de inspiração islâmica.

A este propósito, recordo o artigo de Adriano Moreira, publicado no Diário de Notícias de 1-5-2012.

A unidade da Europa perante o mundo parece ter exigido, na sua narrativa histórica, a existência de um perigo iminente, designadamente de uma agressão. (...) A última guerra mundial, e a guerra fria que se lhe seguiu por meio século, foram suficientes para determinar um sentimento de identidade europeia por oposição aos totalitarismos de vários sinais que se recortavam como ameaças (...) Isto sabendo-se, por experiência antiga, que sem um sentido de território próprio, e de identidade suficiente da população perante os vizinhos, que são os outros, não é possível uma unidade política com viabilidade assegurada.

Parece ser assim a monstruosidade dos totalitarismos, sobretudo o totalitarismo islâmico na actualidade, que, acentuando o sentimento de perigo colectivo através de acções terroristas, se constitui como fonte reactiva de percepção de identidade europeia, permitindo a possibilidade política de Merkel e Hollande caminharem literalmente de mãos dadas pelas ruas ensanguentadas de Paris.

21 de novembro de 2014

A publicação de entrevistas a "jihadistas" enquanto falso dever de informar


É inconcebível que uma revista portuguesa publique uma entrevista ao "jihadista português", sobretudo quando se sabe que mata por motivos político-religiosos. O interesse que o público possa ter na compreensão deste mal deverá ser publicado apenas, e só apenas, depois de uma estruturação adequada e submissão a um pensamento crítico, como aconteceu com Eichmann. Arendt não convidou o nazi para o seu sofá para divulgar a sua defesa mesmo antes de qualquer julgamento. Isso não é "dever de informar", é mera curiosidade mórbida; e mais agravada quando constitui, simultaneamente, propaganda (de capa!) ao ISIS, que manifestamente recruta através de acções de divulgação mediática como esta. A Sábado, ao dar voz a jihadistas assassinos, participa no recrutamento de outros jihadistas (que não passam de "rebeldes sem causa") e banaliza seriamente a questão do mal, adormecendo-a.

28 de abril de 2012

O gladiador

Habet! 


A Roma antiga era detentora de uma dualidade desconcertante: por um lado, constituiu o pilar da administração central e do Direito, da construção de estradas e aquedutos, e de medidas de higiene pública; por outro, deliciava-se com o espectáculo de esquartejamento entre gladiadores.

Embora, na sociedade actual, repudiemos veementemente esse espectáculo, ele continua a ser, de entre todas as conquistas romanas, o facto mais reproduzido -- vejam-se os livros de História, veja-se no cinema 'O Gladiador', veja-se na televisão a série 'Spartacus'.

Este dualismo ambíguo de repulsa e atracção pede que reflictamos profundamente na nossa própria relação com a violência. 

Tito, em 80 d.C., mandou organizar em Roma jogos em honra do Coliseu que duraram 100 dias. Num só dia combateram 3000 homens. Na geração seguinte, Trajano celebrou uma vitória militar com jogos que duraram 123 dias, ao longo dos quais se mataram 11000 animais e combateram 10000 gladiadores. 

Estas extravagâncias imperiais, que fazem qualquer filme de James Cameron parecer insípido, foram concebidas para ser avassaladoras, únicas e monumentais, e além de tremendamente dispendiosas foram organizadas como forma de declarar agressiva e publicamente o poder absoluto do imperador sobre o mundo terreno.

O tamanho da multidão era proporcional à carnificina. O Coliseu de Roma tinha uma capacidade máxima de 50000 lugares, que se esgotavam aquando dos jogos, sendo os espectadores homens e rapazes de todos os estratos sociais. As mulheres só eram permitidas na comitiva do imperador. 

Para a elite, os jogos constituíam uma espécie de festa chique, na qual viam um trampolim social. Os senadores rico, mas em particular os imperadores, competiam na organização dos eventos mais sumptuosos e memoráveis.

Os últimos combates entre gladiadores de que há registo remontam ao século VI, tendo desaparecido, não por falta de motivação, mas por falta de dinheiro.

Os gladiadores distribuíam-se por quatro categorias. Todos usavam uma tanga e caneleiras de bronze. Três das categorias caracterizavam-se ainda pelo uso de um grande capacete, uma manga de metal ou couro a proteger um dos braços e um escudo. O quarto tipo de gladiador era o 'reciário' («homem da rede»), que lutava com rede e tridente, mas sem capacete. As categorias lutavam entre si, de forma a contrabalançar as habilidades próprias de cada uma. 

Este equipamento-padrão revelava o corpo de duas maneiras sugestivas: a maioria dos gladiadores tinha a cabeça oculta pelo capacete, o que significava que o combate não era ocasião para se observar as expressões de angústia ou de triunfo; segundo, lutavam com o tronco nu - que servia, não para o exibir, mas como símbolo de bravura positiva. O gladiador derrotado tinha de expor o peito a fim de receber o golpe final. Não podia pestanejar, hesitar nem esquivar-se. Tinha de receber o golpe «com o corpo inteiro», segundo as palavras de Cícero. 

Para esta ostentação pública do corpo valente e lacerado tornava-se essencial que os gladiadores fossem, por norma, escravos ou criminosos. Os escravos eram tratados como uma categoria humana diferente, sendo habitualmente usados como máquinas, fontes desumanizadas de trabalho. O corpo do escravo não recebia nenhuma protecção inerente ao cidadão. Não tinha direitos e não podia impedir o seu dono de fazer o que quisesse: espancar, marcar com ferro quente ou ter relações sexuais. 

Antes mesmo de Kirk Douglas ou Russell Crowe, o gladiador era um símbolo sexual, exercendo uma atracção grosseira. Como declarou Juvenal: «Que é que essas mulheres adoram? A espada...»

Faustina, a mulher do imperador Marco Aurélio Antonino, engraçou-se por um gladiador e cometeu a asneira de o confiar ao marido. Este mandou imediatamente matá-lo e obrigou Faustina a banhar-se no seu sangue, antes de ter relações sexuais com ela. O filho de ambos, Cómodo, o imperador mais sórdido na sua atitude perante a arena, insistia em lutar em pessoa no espectáculo. Munido de lança e de arco e flechas chacinou, em dois dias, cinco hipopótamos, dois elefantes, um rinoceronte e uma girafa. Chegou a participar nos combates preliminares com gladiadores, embora com espadas rombas, e, sendo imperador, ganhava sempre. Os romanos sentiam-se repugnados com estas exibições. Morreu estrangulado em estado ébrio (não o apunhalaram na arena, como acontece no filme). 

Não obstante toda a demonstração de poder pelo imperador na sumptuosidade dos jogos, nada ultrapassava o facto de, no final do combate, ante o apelo do gladiador vitorioso ao homem que oferecera os jogos, decidir se devia matar ou poupar o adversário. A turba rugia dando a sua opinião, e o imperador, mediante um sinal de mão (polegar para cima significava morte, polegar para baixo significava vida), decidia a sorte do derrotado. 

A excitação dos jogos encontrava-se profundamente interligada à linha ténue que separa a vida da morte: o virar de um polegar e a oportunidade de alguém entre a assistência gritar a sentença de morte. Como escreveu Juvenal: «Até os que não matam querem ter o poder de o fazer».

No momento do clímax, a multidão inteira e os protagonistas do combate centravam a atenção no imperador; e, nesse instante, a própria essência da vida ficava suspensa de um gesto. O poder do imperador apresentava-se intensamente. 

Os jogos também tinham uma componente punitiva. Os criminosos eram ali executados em público, e de forma bizarramente variável. Podiam ser 'simplesmente' atirados às feras (que tinham jejuado convenientemente). Tratar os homens como carne para as feras dilacerarem e comerem integrava o rebaixamento humilhante da condição de criminoso para o estatuto de não-humano.

Podiam também ser usados enquanto projécteis em batalhas encenadas; ou podiam mesmo ser usados em encenações de mortes mitológicas, como a queima de Hércules numa pira (protagonizada convenientemente por um criminoso) ou o pecado de Pasífae, que dormiu com um touro, relação da qual nasceu o Minotauro (obrigavam uma mulher a copular com um touro até morrer...). Ao longo da história da Europa continuaram a ser comuns os castigos públicos e violentos, como a decapitação, o enforcamento, ser-se arrastado, mas as torturas grotescas das reconstituições mitológicas foram exclusivas de Roma. 

O que mais tem empolgado e fascinado a sociedade ocidental desde a época da Renascença é justamente o arroubo e a excitação da multidão romana -- a turba ululante, febril e vibrante, cristalizada pelo espectáculo da morte humana.

Ficamos tão absorvidos na contemplação dos espectadores como na contemplação da morte. O misto de erotismo e de violência que tanto atrai e repele a audiência moderna está retratado de forma contundente em Habet! de Simeon Solomon, que retrata o momento da morte de um gladiador reflectido nas diversas expressões físicas de desejo e de poder por parte das mulheres.  

30 de maio de 2011

É necessário acordar em semana de eleições: a bananeira está seca.




A razão do sucesso do PS nos últimos anos está numa máquina de propaganda que faria corar Goebbels. O português médio é permeável a esta propaganda e incapaz de ver para além dela. Deixa-se insuflar e adormecer à sombra da bananeira de «ideias» plantadas nas suas celulazinhas cinzentas preguiçosas. Este artigo, escrito nesta semana pelo Arq.º José António Saraiva, revela como se articula a máquina luciferista.




O robô e a máquina de propaganda

por José António Saraiva




A máquina do Governo dispõe de uma redacção que ataca os artigos e os colunistas considerados hostis.

Muitas vezes fala-se da ‘máquina de propaganda’ do Governo socialista. Mas nunca houve uma tentativa séria de investigar como funciona, que métodos utiliza, quantas pessoas envolve, quem a dirige, etc.

Vou dizer o que sei.

Essa máquina desdobra-se por várias frentes. Tem uma espécie de redacção central, que funciona como a redacção de um jornal, cuja missão é fazer constantemente contra-propaganda. Dispõe de um blogue chamado Câmara Corporativa (http://corporacoes.blogspot.com) e está permanentemente atenta a tudo o que se publica, desmentindo as notícias consideradas negativas para o Governo.

Além disso, critica artigos de opinião publicados nos jornais, rebatendo os argumentos e, por vezes, ridicularizando ou desacreditando os seus autores.

Mobiliza pessoas para intervir nos fóruns tipo TSF que hoje existem em todas as estações de rádio e TV.

Selecciona na imprensa internacional notícias, artigos ou entrevistas favoráveis ao Governo português e põe-nos a circular entre jornalistas e colunistas ‘amigos’.

É por esta última razão que vemos às vezes opiniões publicadas em obscuros órgãos de comunicação estrangeiros citadas em Portugal por diversas pessoas como importantes argumentos.

Outra vertente são as relações com jornalistas. Há uma rede de jornalistas ‘amigos’ e a coisa funciona assim: um assessor fala com um jornalista amigo e dá-lhe determinada informação. Chama-se a isto ‘plantar uma notícia’ – e todos os Governos o fazem. Só que, uma vez a notícia publicada, às vezes com pouco destaque, os assessores telefonam a outros jornalistas e sopram-lhes: «Viste aquela notícia no sítio tal? Olha que é verdade! E é importante!». E assim a notícia é amplificada, conseguindo-se um efeito de confirmação.

Umas vezes as notícias plantadas são verdadeiras, outras vezes são falsas. O Expresso, por exemplo, chegou a publicar em semanas consecutivas uma coisa e o seu contrário. Significativamente, o que estava em causa era Teixeira dos Santos, que o PS queria queimar.

E constata-se que as notícias desagradáveis para a oposição têm mais eco do que outras. Veja-se a repercussão que teve uma carta de António Capucho publicada no SOL, que era um documento interessante mas não tinha a relevância que acabou por ter. A máquina de propaganda amplifica as notícias que interessam ao Governo.

Em seguida, os comentadores colocados pelo PS nos vários programas de debate que hoje enxameiam as televisões repetem os argumentos convenientes. José Lello, Sérgio Sousa Pinto, Emídio Rangel, Francisco Assis, etc., repetem à saciedade, às vezes como papagaios, as mesmas ideias. E mesmo António Costa, na Quadratura do Círculo, um programa de características diferentes, não foge à regra: nunca o vi fazer uma crítica directa a Sócrates. Mas vi-o fazer uma crítica brutal a Teixeira dos Santos, na tal altura em que começou a cair em desgraça.

As únicas situações em que as coisas fugiram do controlo da máquina socrática foram os casos Freeport e Face Oculta. Só que aí era impossível abafá-los. E para os combater foram lançadas contra-campanhas, como expliquei noutros artigos. E houve pessoas que pagaram por isso.

A par das relações com os jornalistas, que se processam diariamente, há outro aspecto decisivo que passa pelo controlo dos principais meios.

A tentativa de comprar a TVI falhou, mas José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes foram afastados e a orientação editorial da estação mudou. José Manuel Fernandes foi afastado do Público, e a orientação do jornal também mudou. Medina Carreira foi afastado da SIC. O SOL foi alvo de uma tentativa de asfixia. E estes são apenas os casos mais conhecidos.

Por outro lado, o Governo soube cultivar boas relações com os patrões dos grandes grupos de media – a Controlinvest, a Cofina e a Impresa –, também como consequência das crises financeiras em que estes se viram mergulhados.

Podemos assim constatar que, das três estações de TV generalistas, nenhuma hoje é hostil ao Governo. A RTP é do Estado, a TVI – que era muito crítica – foi apaziguada, a SIC tem--se vindo a aproximar do Executivo. Ora isto é anormal na Europa. Em quase todos os países há estações próximas da esquerda, há estações próximas da direita, há estações próximas do Governo, há estações próximas da oposição. Em Portugal é diferente.

Ainda no plano da contra-propaganda, já falei noutras alturas da técnica do boomerang. Como funciona? Quando alguém da oposição (regra geral, o líder do PSD) diz qualquer coisa passível de exploração negativa, toda a máquina se põe a mexer para usar essa ideia como arma de arremesso contra quem a proferiu.

Passos Coelho diz que quer mudar certas regras na Saúde – e logo Francisco Assis, Silva Pereira, Vieira da Silva, Jorge Lacão ou Santos Silva, os gendarmes de serviço, vêm gritar: «O PSD quer acabar com o Serviço Nacional de Saúde!». Passos Coelho diz qualquer coisa sobre as escolas públicas e as privadas – e lá vêm os mesmos dizer: «O PSD quer acabar com o ensino público gratuito!». Passos Coelho diz que quer certificar as ‘Novas Oportunidades’ – e os mesmos repetem: «O PSD ofendeu 500 mil portugueses!». E, no final, todos dizem em coro: «O PSD quer acabar com o Estado Social!».

Passos Coelho não soube lidar com isto de início. E, perante estes ataques, acabou muitas vezes por bater em retirada. Propôs uma revisão constitucional e recuou. Outras vezes explicou-se em demasia. E com isso deu uma ideia de impreparação e falta de convicção, que só recentemente conseguiu corrigir.

Mas a máquina não fica por aqui. Tem muitas outras frentes de combate. Os assessores do primeiro-ministro organizam dossiês para cada ministro, dizendo-lhes como devem reagir perante o que diariamente é publicado na imprensa. Assim, bem cedo pela manhã, um assessor telefona a um ministro, faz-lhe uma resenha da imprensa e diz-lhe o que ele deve responder a esta e àquela pergunta.

Claro que há ministros que não aceitam este paternalismo. Que querem ter liberdade para responder pela sua cabeça. Mas esses ficam logo marcados. Admito que Luís Amado não aceite recados, estou certo de que Campos e Cunha não os aceitou, Freitas do Amaral também não. Mas a maioria dos outros aceitou-os ou aceita-os, até para tranquilidade própria: assim têm a certeza de não cometer gaffes e não desagradar ao primeiro-ministro.

E já não falo nos boys colocados em todos os Ministérios e em todas as administrações das empresas públicas e que funcionam como correias de transmissão da opinião do Governo. Rui Pedro Soares é o caso mais conhecido. Mas obviamente não é o único. Eles estão por toda a parte. Muitas vezes nem têm posições de grande relevo. Mas o facto de se saber que são os porta-vozes do poder confere-lhes importância acrescida, porque as pessoas receiam-nos.

Como resultado de tudo isto, muita gente, mesmo dentro do PS, tem medo. Evita falar. No congresso socialista, que mais parecia um encontro da IURD, vimos pessoas respeitáveis participar alegremente na farsa sem um gesto de distanciação. Chegou a meter dó ver António Costa, António Vitorino, o próprio Almeida Santos, envolvidos naquela encenação patética.

Que foi produzida como uma super-produção, com sofisticados meios audiovisuais. Quando Sócrates começou a proferir a primeira das três últimas frases do seu último discurso, uma música ‘heróica’ começou a ouvir-se baixinho. E foi subindo, subindo de tom – e quando Sócrates acabou de falar a música estoirou, as luzes brilharam, não sei se houve fogo preso mas podia ter havido, choveram flores, foi a apoteose.

Quem dirigirá esta poderosa e bem oleada máquina de propaganda e contra-propaganda?

Haverá certamente um núcleo duro, ao qual não serão alheios aqueles que dão a cara nos momentos difíceis: Francisco Assis, Jorge Lacão e os três Silvas: Vieira da Silva, Augusto Santos Silva e Pedro Silva Pereira.

Há quem fale numa personagem misteriosa, sibilina, que não gosta dos holofotes e que dá pelo nome de Luís Bernardo. Actualmente é assessor de Sócrates, antes foi assessor de Carrilho na Cultura. Pedro Norton, actual número 2 da Impresa e seu amigo, diz que ele é «o homem mais inteligente que conhece».

Acontece que uma máquina política pode ser muito boa, pode estar muito bem oleada, pode funcionar na perfeição, mas tem sempre um ponto fraco: depende em última análise da performance de um homem.

Durante anos essa performance foi quase perfeita – por isso chamei a Sócrates um ‘robô político’. Ora esse robô, agora, começou a falhar. E a derrota televisiva perante Passos Coelho pode ter posto em causa toda a engrenagem. O robô engasgou-se, exaltou-se, esteve à beira de colapsar.

E quando isso acontece não há máquina de propaganda que valha.

6 de setembro de 2010

Não gostava do George Steiner até...

 Nunca apreciei particularmente Steiner. Mas reconheço que prestarei a devida vassalagem doravante, tendo-me rendido à seguinte crítica do filme «Sunset Boulevard»

 [Suneset Boulevard] is a nineteen-fifty-something movie starring quite a few actors, produced by someone with money, and directed by someone else whose name is not worth bothering your pretty little head about. The main plot revolves around a group of people who interact with each other by way of talking and gesticulating. All this talking and gesticulating produces a few actions, which produce, in turn, some reactions. The movie starts at the end but gets a grip on itself and comes back, proceeding then in an orderly fashion from start to finish; along the way it passes through several points which could, when taken together, be described as “the middle”. Stuff happens throughout, and consequences to the happening of stuff are also shown. Sometimes, confusingly, different kinds of stuff happen almost at once: two or more people may be talking, or even talking and eating simultaneously, and all of a sudden there is a cut and in the next shot we see someone entirely different driving a car, or shaving, or burying a monkey. It gets pretty frantic up there on the screen, but after a couple of hours of all this stuff happening, stuff suddenly stops happening, meaning that the movie has ended, so, you know, whatever.» (George Steiner, Tiresias’ Curse, or Having Fun at the Movies, p. 328)

21 de agosto de 2010

15 de maio de 2010

Montaigne forever

Este texto, tirado dos Ensaios de Montaigne, recordou-me vivamente o Armando:

Conheço um fidalgo que, depois de ter recebido um grupo de convidados no seu salão, quatro ou cinco dias mais tarde, contou em tom de anedota (por não haver qualquer verdade nisso) que lhes servira pastelão de gato; uma das damas que se encontrava na reunião ficou de tal modo horrorizada com isto que sucumbiu com um sério problema de estômago e um acesso de febre: foi impossível salvá-la.
Ensaios, I, 21

27 de fevereiro de 2010

Porque beijamos as pessoas?




Porque beijamos as pessoas? Será apenas para desencadear potenciais de acção nas abundantes terminações nervosas sensitivas dos lábios? Será apenas para obter uma satisfação física? Ou procuramos mais do que isso? As expectativas que levamos na boca num beijo inicial vão além de uma tentativa de prazer suave e húmido, parecemos querer realmente saborear a pessoa em si e por inteiro, prendê-la como se os lábios fossem capazes de formas superiores de posse. A boca é, neste como noutros muitos sentidos, a maior sede de expressão da intimidade. Mas na verdade, talvez na verdade da modernidade, o beijo perdeu muito do seu poder. A boca, nesse sentido, constitui-se como simples órgão imperfeito de apreciação e de atribuição de prazer. E assim considerado, com as suas limitações, leva-nos ao erro de confundirmos o tédio que passou a ser um beijo com o tédio que acreditamos ser da pessoa que beijamos.

19 de janeiro de 2010

Bem-vindo à modernidade, Ms. Proust

Proust descreve o seu estado habitual como «suspenso entre cafeína, aspirina, asma, angina de peito e, basicamente, entre a vida e a morte seis em cada sete dias».