28 de abril de 2012

O gladiador

Habet! 


A Roma antiga era detentora de uma dualidade desconcertante: por um lado, constituiu o pilar da administração central e do Direito, da construção de estradas e aquedutos, e de medidas de higiene pública; por outro, deliciava-se com o espectáculo de esquartejamento entre gladiadores.

Embora, na sociedade actual, repudiemos veementemente esse espectáculo, ele continua a ser, de entre todas as conquistas romanas, o facto mais reproduzido -- vejam-se os livros de História, veja-se no cinema 'O Gladiador', veja-se na televisão a série 'Spartacus'.

Este dualismo ambíguo de repulsa e atracção pede que reflictamos profundamente na nossa própria relação com a violência. 

Tito, em 80 d.C., mandou organizar em Roma jogos em honra do Coliseu que duraram 100 dias. Num só dia combateram 3000 homens. Na geração seguinte, Trajano celebrou uma vitória militar com jogos que duraram 123 dias, ao longo dos quais se mataram 11000 animais e combateram 10000 gladiadores. 

Estas extravagâncias imperiais, que fazem qualquer filme de James Cameron parecer insípido, foram concebidas para ser avassaladoras, únicas e monumentais, e além de tremendamente dispendiosas foram organizadas como forma de declarar agressiva e publicamente o poder absoluto do imperador sobre o mundo terreno.

O tamanho da multidão era proporcional à carnificina. O Coliseu de Roma tinha uma capacidade máxima de 50000 lugares, que se esgotavam aquando dos jogos, sendo os espectadores homens e rapazes de todos os estratos sociais. As mulheres só eram permitidas na comitiva do imperador. 

Para a elite, os jogos constituíam uma espécie de festa chique, na qual viam um trampolim social. Os senadores rico, mas em particular os imperadores, competiam na organização dos eventos mais sumptuosos e memoráveis.

Os últimos combates entre gladiadores de que há registo remontam ao século VI, tendo desaparecido, não por falta de motivação, mas por falta de dinheiro.

Os gladiadores distribuíam-se por quatro categorias. Todos usavam uma tanga e caneleiras de bronze. Três das categorias caracterizavam-se ainda pelo uso de um grande capacete, uma manga de metal ou couro a proteger um dos braços e um escudo. O quarto tipo de gladiador era o 'reciário' («homem da rede»), que lutava com rede e tridente, mas sem capacete. As categorias lutavam entre si, de forma a contrabalançar as habilidades próprias de cada uma. 

Este equipamento-padrão revelava o corpo de duas maneiras sugestivas: a maioria dos gladiadores tinha a cabeça oculta pelo capacete, o que significava que o combate não era ocasião para se observar as expressões de angústia ou de triunfo; segundo, lutavam com o tronco nu - que servia, não para o exibir, mas como símbolo de bravura positiva. O gladiador derrotado tinha de expor o peito a fim de receber o golpe final. Não podia pestanejar, hesitar nem esquivar-se. Tinha de receber o golpe «com o corpo inteiro», segundo as palavras de Cícero. 

Para esta ostentação pública do corpo valente e lacerado tornava-se essencial que os gladiadores fossem, por norma, escravos ou criminosos. Os escravos eram tratados como uma categoria humana diferente, sendo habitualmente usados como máquinas, fontes desumanizadas de trabalho. O corpo do escravo não recebia nenhuma protecção inerente ao cidadão. Não tinha direitos e não podia impedir o seu dono de fazer o que quisesse: espancar, marcar com ferro quente ou ter relações sexuais. 

Antes mesmo de Kirk Douglas ou Russell Crowe, o gladiador era um símbolo sexual, exercendo uma atracção grosseira. Como declarou Juvenal: «Que é que essas mulheres adoram? A espada...»

Faustina, a mulher do imperador Marco Aurélio Antonino, engraçou-se por um gladiador e cometeu a asneira de o confiar ao marido. Este mandou imediatamente matá-lo e obrigou Faustina a banhar-se no seu sangue, antes de ter relações sexuais com ela. O filho de ambos, Cómodo, o imperador mais sórdido na sua atitude perante a arena, insistia em lutar em pessoa no espectáculo. Munido de lança e de arco e flechas chacinou, em dois dias, cinco hipopótamos, dois elefantes, um rinoceronte e uma girafa. Chegou a participar nos combates preliminares com gladiadores, embora com espadas rombas, e, sendo imperador, ganhava sempre. Os romanos sentiam-se repugnados com estas exibições. Morreu estrangulado em estado ébrio (não o apunhalaram na arena, como acontece no filme). 

Não obstante toda a demonstração de poder pelo imperador na sumptuosidade dos jogos, nada ultrapassava o facto de, no final do combate, ante o apelo do gladiador vitorioso ao homem que oferecera os jogos, decidir se devia matar ou poupar o adversário. A turba rugia dando a sua opinião, e o imperador, mediante um sinal de mão (polegar para cima significava morte, polegar para baixo significava vida), decidia a sorte do derrotado. 

A excitação dos jogos encontrava-se profundamente interligada à linha ténue que separa a vida da morte: o virar de um polegar e a oportunidade de alguém entre a assistência gritar a sentença de morte. Como escreveu Juvenal: «Até os que não matam querem ter o poder de o fazer».

No momento do clímax, a multidão inteira e os protagonistas do combate centravam a atenção no imperador; e, nesse instante, a própria essência da vida ficava suspensa de um gesto. O poder do imperador apresentava-se intensamente. 

Os jogos também tinham uma componente punitiva. Os criminosos eram ali executados em público, e de forma bizarramente variável. Podiam ser 'simplesmente' atirados às feras (que tinham jejuado convenientemente). Tratar os homens como carne para as feras dilacerarem e comerem integrava o rebaixamento humilhante da condição de criminoso para o estatuto de não-humano.

Podiam também ser usados enquanto projécteis em batalhas encenadas; ou podiam mesmo ser usados em encenações de mortes mitológicas, como a queima de Hércules numa pira (protagonizada convenientemente por um criminoso) ou o pecado de Pasífae, que dormiu com um touro, relação da qual nasceu o Minotauro (obrigavam uma mulher a copular com um touro até morrer...). Ao longo da história da Europa continuaram a ser comuns os castigos públicos e violentos, como a decapitação, o enforcamento, ser-se arrastado, mas as torturas grotescas das reconstituições mitológicas foram exclusivas de Roma. 

O que mais tem empolgado e fascinado a sociedade ocidental desde a época da Renascença é justamente o arroubo e a excitação da multidão romana -- a turba ululante, febril e vibrante, cristalizada pelo espectáculo da morte humana.

Ficamos tão absorvidos na contemplação dos espectadores como na contemplação da morte. O misto de erotismo e de violência que tanto atrai e repele a audiência moderna está retratado de forma contundente em Habet! de Simeon Solomon, que retrata o momento da morte de um gladiador reflectido nas diversas expressões físicas de desejo e de poder por parte das mulheres.  

1 comentário:

APC disse...

Extraordinário! Adorei!!! :-)