3 de setembro de 2009

Rogério Casanova - «Pastoral Portuguesa»




Sempre me confundiu o uso do vocábulo 'hilariante'. As primeiras vezes que tive contacto com ele (estranhamente, lembro-me da primeira vez que tive contacto com um grande número de palavras) foi em desenhos-animados que propalavam o uso do 'gás hilariante' como método terrificamente incapacitante de inimigos. Numa determinada tarde de domingo dos anos 90 iniciais, inevitavelmente reservada a uma caminhada até ao clube de vídeo (supina diversão naquela época, naquela cidade), deparei-me com a capa de uma cassete VHS de um filme qualquer sobre porcos e gargalhadas. Aparentes críticos (de provável inserção ideológica em correntes anti-kakutanianas) classificavam-no, não só como a 'melhor comédia do ano', mas como uma obra 'hilariante'. Acreditei candidamente que seria uma história que me faria rir a bandeiras despregadas. Será fácil de perceber porque se tornou nebuloso, na minha mente ingénua de então, o conceito de hilariante. A verdade é que a forma desse conceito poucas vezes, ao longo da minha vida, foi preenchida com um conteúdo. Lembro-me, mais recentemente, dos discursos pausados do Bruno Aleixo, na sua crítica à ingénua e maliciosa estupidez da sociedade portuguesa, e da sua estética a roçar o kitsch.

Rogério Casanova era um ilustre desconhecido meu, até assinar, prenho de uma emoção lacrimejantemente cultural, a revista LER por um período de 12 meses, completos com direito a dicionário Houaiss de sinonímia. Casanova é um dos cronistas e escreve delirantemente sobre os temas mais eruditos e seriamente sobre os temas mais abstrusos, descortinando significados que parodiam caricaturalmente a realidade quotidiana (o que, de resto, sempre assumiu um papel prevalente na interpretação e compreensão do mundo através da arte). Casanova é o 'olho que fica de fora' de que nos falava Virginia Woolf, aquele cinismo que é necessário para nos apartarmos disto (a realidade) e, assim, termos as condições de acesso à sua inteligibilidade asseguradas. Comte dizia que ninguém pode estar à janela para se ver passar na rua: o escritor faz isso mesmo, deixa um terceiro olho na janela para se ver passar na rua. E Casanova faz também isso, misturando um insuperável humor na análise do que vê passar na rua. Pode haver quem critique o uso do humor como alguma falta de seriedade em temas que não se admitem como não sendo sérios. Mas, para mim, quem continua a ter razão é Goethe: o humor é o pátio de recreio da inteligência. Casanova é um escritor (e não afirmo isto de ânimo leve); e é um escritor inteligente.