Sempre me confundiu o uso do vocábulo 'hilariante'. As primeiras vezes que tive contacto com ele (estranhamente, lembro-me da primeira vez que tive contacto com um grande número de palavras) foi em desenhos-animados que propalavam o uso do 'gás hilariante' como método terrificamente incapacitante de inimigos. Numa determinada tarde de domingo dos anos 90 iniciais, inevitavelmente reservada a uma caminhada até ao clube de vídeo (supina diversão naquela época, naquela cidade), deparei-me com a capa de uma cassete VHS de um filme qualquer sobre porcos e gargalhadas. Aparentes críticos (de provável inserção ideológica em correntes anti-kakutanianas) classificavam-no, não só como a 'melhor comédia do ano', mas como uma obra 'hilariante'. Acreditei candidamente que seria uma história que me faria rir a bandeiras despregadas. Será fácil de perceber porque se tornou nebuloso, na minha mente ingénua de então, o conceito de hilariante. A verdade é que a forma desse conceito poucas vezes, ao longo da minha vida, foi preenchida com um conteúdo. Lembro-me, mais recentemente, dos discursos pausados do Bruno Aleixo, na sua crítica à ingénua e maliciosa estupidez da sociedade portuguesa, e da sua estética a roçar o kitsch.
Rogério Casanova era um ilustre desconhecido meu, até assinar, prenho de uma emoção lacrimejantemente cultural, a revista LER por um período de 12 meses, completos com direito a dicionário Houaiss de sinonímia. Casanova é um dos cronistas e escreve delirantemente sobre os temas mais eruditos e seriamente sobre os temas mais abstrusos, descortinando significados que parodiam caricaturalmente a realidade quotidiana (o que, de resto, sempre assumiu um papel prevalente na interpretação e compreensão do mundo através da arte). Casanova é o 'olho que fica de fora' de que nos falava Virginia Woolf, aquele cinismo que é necessário para nos apartarmos disto (a realidade) e, assim, termos as condições de acesso à sua inteligibilidade asseguradas. Comte dizia que ninguém pode estar à janela para se ver passar na rua: o escritor faz isso mesmo, deixa um terceiro olho na janela para se ver passar na rua. E Casanova faz também isso, misturando um insuperável humor na análise do que vê passar na rua. Pode haver quem critique o uso do humor como alguma falta de seriedade em temas que não se admitem como não sendo sérios. Mas, para mim, quem continua a ter razão é Goethe: o humor é o pátio de recreio da inteligência. Casanova é um escritor (e não afirmo isto de ânimo leve); e é um escritor inteligente.
5 comentários:
Olá,
"o humor é o pátio de recreio da inteligência".
Estou em perfeita sintonia com este pensamento.
E que falta nos fazia dose dupla!.
Isa
Em período de eleições anda tudo muito sizudo...
Belíssimo texto, o teu. Só, a certa altura, aquela suave oposição entre o "porque" e o "por que", subtileza de que sou fã! ;-)
Curiosamente, também eu tenho qualquer coisa de especial em relação à revista Ler: na cidade onde moro já houve um tempo de não haver NENHUMA livraria. Ora houve, ora não houve, ora tornava a haver, mas lá falia de novo; donde, livros só nalgumas papelarias maiorzinhas e, ainda assim, mais versadas para manuais escolares. Até que, finalmente, apareceu uma, ao cantinho de uma rua, aparentemente candidata a falir ainda mais depressa do que as anteriores, mas que por lá foi ficando e ainda permanece. Dela me tornei visita a cada uma das poucas vezes em que por cá posso cirandar, e foi com alegria imensa que descobri que vendiam a revista que só em Lisboa comprara. Não a assino, isso não, que gosto é do acto de a ir buscar, de ver o que há de novo na loja, de conversar um pouco e ir depois paginá-la num café. Mas colecciono-a. Também por isso gostei imenso da tua crítica, apesar de nunca antes ter pensado tão assim, mas gostei dessa novidade. Acho que vou reler esse escriba com um outro olhar, so thanks Calvin! :-P
Bela, a frase de Goethe. Apesar do que também será precisa inteligência para se saber brincar no pátio do humor, considerado, por alguns, como um dos pilares da IE! :-)
Agora, o que me lembrou de aqui vir hoje: o facto da obra que dá nome a este espaço já se encontrar editada em versão audio, lida pela Rosa Lobato Faria. Quem sabe a queiras escutar, no carro ou com auriculares, nas tuas idas e voltas? Bem sei que nada retira o prazer de uma leitura, mas também é verdade que à vista saltam novos pormenores sobre uma mesma realidade quando é um outro que no-la mostra; e bem assim quando nos ouvimos ecoar. Enfim, é só uma ideia! E um abraço no mesmo saco.
Reparei agora: a mocinha da capa da Pastoral tem um corpo irrecriminável! Lol
Já agora: como "fã" dessas tugo-subtilezas, importaria que eu as conhecesse melhor. Ou seja: esquece lá isso que eu disse sobre o uso do "porque", que no teu texto está correctíssimo; eu é que estava enganada! Apesar de ser "por que razão/motivo", é "porque" que se escreve quando não tenha à frente tais substantivos que obriguem o "que" a significar "qual" ou "quais". É, de facto, uma subtileza interessante, mas importa que a saibamos reconhecer, e eu confundi.
Beijinhos
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