14 de março de 2006

Os insossos

Há uns tempos discutia-se à refeição qual a forma correcta de escrever: insosso, insonso, insosso ou insonso.

Para descobrir a forma correcta, temos primeiro de aplicar as boas regras da retórica e começar por definir o objecto.

O insosso é aquela pessoa que usa a palavra «indivíduo» e age numa gama de humor que vai do sorriso amarelo ao ar superiorizado de sopeira ao atender o carteiro quando o patrão saiu para o trabalho.

Corta o cabelo sempre no mesmíssimo sítio há vários anos, que por sinal é está no top 10 do mais baratucho/seboso num raio de 30 km em todas as direcções.

O insosso, quando tem um laivo de si próprio, usa expressões como «curtir», «totó», «vamos pr’a night» e age como se não fosse ele o insosso, mas os outros, quando lhe vem a pica uma ou duas vezes por ano para sair à noite. De resto, a diversão máxima que consegue conceber no quotidiano quadrado que leva é sair depois do jantar para beber umas cervejas (a que chama afectuosamente ‘bejecas’) com os amigos, que, por conceberem uma mundivisão símile, também se definem como insossos.

Quando tem a rara oportunidade de se ver ao espelho, e não apenas de o olhar todas as manhãs para ver se a barba está bem aparada (Deus o livre do desleixo!), decide deixar crescer umas cerdas faciais, a que chama pêra, para finalmente deixar alguma novidade entrar na sua vida. Como o seu humor é restrito como as sarjetas de Lisboa após uma chuvada, faz má cara a quem tente brincar com o novo aparato facial.

Nos demais dias, acorda cedo e deita-se cedo, sempre rumorejando no vácuo existencial que espelha o deserto dos seus pensamentos. A sua vida, do nascimento à morte, há-de ser rotina insípida e ridícula, passando-lhe sempre ao lado anos e anos de fervor, furor e ferocidade apaixonada.

A sua corrente de consciência é um ribeirozeco, porque sempre idêntica, na forma e pseudoconteúdo e inflexibilidade. Os seus erros são os mesmos porque ele é incapaz de aprender (afinal, já sabe tudo...) Está sempre certo e os outros sempre errados. Para o insosso é perfeitamente lógico que a maioria das pessoas esteja errada e ele (juntamente com meia-dúzia de outros insossos) certo. Jamais será capaz de discutir, porque nesse espaço é necessário que haja confronto de ideias e o insosso não as tem, apesar de chamar ideias aos seus preconceitos e suas às ideias dos outros.

O insosso tem muitas vezes crises de meia-idade, quando a vida, farta da sua própria monotonia, lhe espalha na cara o tédio e o erro que tem sido.

O insosso, quando chega à velhice, faz muitas viagens de terceira idade, visitando aquilo que já há muito deveria ter sido visitado. A sua necessidade cultural nunca passou dos leads jornalísticos. Os seus ídolos são pessoas do seu próprio circulozinho, nunca configurando que se possa ser mais inteligente do que o seu próprio chefe.

O insosso, quando faz uma caminhada, reitera inúmeras vezes a sua concentração sanguínea de testosterona, afirmando a facilidade do seu desempenho, mesmo que se esteja a borrar todo.

O insosso até pode ler, mas é sempre algum autor de que ouviu falar nas aulas de liceu ou no banco dos santuários; ou então o Destak®. Sempre que passa os olhos em público pelas fotografias desse diário, levanta-os de seguida com o ar de académico de Cambridge. Aliás, ele raramente usa a palavra autor, preferindo sempre a designação ‘escritor’. Ficcionista é coisa que não existe no seu idiolecto.

O mais evoluído e supra literaturesco que atinge é Milan Kundera ou Eça de Queirós. Obviamente, é incapaz de criar neologismos ou divertir-se com paronomásias.

O insosso acha que dobrar as consoantes dos nomes próprios é chique, e não simplesmente um erro ortográfico da classe monárquica analfabeta, que quis manter os erros da ortografia antiga. Claro que o insosso nunca, mas nunca, ouviu falar do acordo ortográfico de 1945.

Assim sendo, apenas podemos admitir que o insosso não se pode escrever com o e- de feroz, o e- de erudito, o e- de elegante. Tem de se iniciar pelo i- de incapaz, inútil e inábil. Além disso, deve ter o n- bem nasalado e lento a prolongar pelo nariz as ironias de meia-tijela que consegue arremessar num acto que considera no mínimo triunfante e de elevada dificuldade intelectual, antes que, também pelo nariz, lhe saia um jorro de água e batata cozida, quando se engasga no cozido à portuguesa que ataca segurando o garfo por cima.


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