20 de maio de 2006

Marcelo


Marcelo Rebelo de Sousa, na conferência de encerramento do ano lectivo em MC, defendeu que os políticos podem e devem, acima de tudo, defender os seus valores éticos, nomeadamente de veia religiosa. Assim, um católico, por princípio, defenderá sempre uma posição antiaborto, não se lhe podendo acusar que «isso pertence à sua vida privada, não cabe numa discussão pública». Concordo plenamente com ele; mas, por falta de oportunidade, não lhe perguntei como resolveria o seguinte problema: Aníbal Cavaco Silva, católico reconhecido, presidente da República, recebe um decreto-lei despenalizando o aborto, aprovado na assembleia da república pela maioria PS. O que faz? Assume a sua posição católica e veta o decreto-lei; ou assume o dever democrático e aprova-o? É que tanto a religiosidade como a democracia são pilares do edifício ético...

Houve uma pergunta da assistência sobre as uniões («casamentos») homossexuais. Nesse particular, Marcelo transpareceu a ideia de que a homossexualidade é um modismo do século XX e que, por isso, não tem cabimento forçá-la para dentro da orgânica jurídica, tendo em conta o nosso conceito tradicional de família.

Ora, Marcelo parece realmente desconhecer que (1) a homossexualidade é mais velha do que Cristo (aliás, existiu desde que existem animais - sim, há animais homossexuais extensa e cuidadosamente descritos -, esses seres criados por Deus e livres do pecado original...), (2) que o nosso conceito «tradicional de família» (que, sociologicamente, nem sequer é o de família nuclear, como ele afirmou), não ultrapassa os 200 anos, e que (3) surgiu nas sociedades cristianizadas já muito tardiamente.

Basta a longa história de bastardias e filhos espúrios na nossa linhagem real católica, para percebermos que o conceito de família não era o mesmo na Renascença ou no período pré-Iluminismo, e muito menos o seria na Antiguidade Clássica. Reconheço que a nossa visão actual da família corresponde à visão cristã, mas há que admitir um pluralismo social tolerante, nomeadamente nas estruturas familiares, que não se podem restringir, nos seus moldes actuais, às populações católicas.

A sociedade europeia tem com certeza profundas raízes na matriz judaico-cristã, mas, hoje, encontra-se profundamente descristianizada. Impedindo que a tradição familiar dessa sociedade abranja o novo núcleo ateu é contribuir ainda mais para a sua descristianização, pois que esse núcleo esquecerá ainda mais as suas origens. Não podemos permitir que uma franja social ateia não possa ter a nossa estrutura familiar arquetípica, apenas porque esta teve uma origem cristã. Um equivalente para contrastar o absurdo da questão, seria dizer que num país com tradição laica, não poderia haver casamentos, de forma a se consevar a sua tradição e valores laicos. Ou que o uso da penicilina deveria ser restrito aos membros da corrente científica inscrita no iluminismo. Não tem cabimento, pois não? E se, ulteriormente, se admitisse que, afinal, na sociedade laica, já pode haver casamentos, mas só de quem não for canhoto. Estúpido, não é? Mas é precisamente a esse nível que se situa a discussão hoje em dia.

Desse modo e excelentemente, se fala hoje de «casamentos» civis. Por um lado, mantém-se a noção da casamento, união vitalícia e monogámica de dois seres com tudo o resto que lhe é inerente, coisa que não é (nem podia ser) privilégio dos católicos. Por outro, não se aboliu a palavra 'casamento' de forma a conservar-se, com o devido respeito, a sua origem.

Usando estes dados, não é muito difícil chegar-se à conclusão que, de facto, existe e deve existir uma instituição denominada 'casamento civil' a qual deve abranger todas os sectores sociais, desde homossexuais a divorciados, ateus e hindus. Digamos que, como se fosse matéria de propriedade intelectual, o conceito de casamento já passou ao domínio público. E, neste domínio, é profundamente injusto reservá-lo às facções heterossexuais em nome da tradição cristã. Se já demos o passo de alargá-lo a ateus, porquê conservar restricções tacanhas?

No século XXI, ter uma família legalmente constituída ainda não é um direito fundamental de todos, mas uma espécide de «privilégio» de alguns. Numa sociedade democrática, todos os cidadão deveriam ter direitos equivalentes. Reservá-los a certas situações em nome de biologia (como fez o autor da pergunta e que é um perfeito disparate, pois ainda não se esclareceu qualquer biologia na homossexualidade e, pelos mesmos dúbios trâmites lógicos, chegaríamos à conclusão de que um casal infértil desde a nascença também não poderia casar), em nome de tradicionalismo (revelando abissais lacunas de conhecimento sociológico) ou em nome de qualquer outra coisa, é uma tacanhez e um atavismo sem nome.

Muitas outras perspectivas de argumentação se poderiam perfilar, nomeadamente o dever de amoralidade estadual, mas que, por agora, me abstenho de interessar à discussão.

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