18 de agosto de 2008

Jogos Olímpicos, Vanessa Fernandes e 'será que hoje me sinto de prata?'



Depois de horas em frente ao televisor, assistindo fanaticamente (no sentido estrito da palavra) aos jogos olímpicos, recebi hoje a notícia, mas pela rádio, do segundo lugar de Vanessa Fernandes na prova do Triatlo. A primeira medalha portuguesa nestes jogos olímpicos de Pequim.


Comoveu-me, claro. Não porque Vanessa Fernandes me lembre a humildade de Rosa Mota, que em pequeno vi algumas vezes treinar nas margens do Douro, ou o empenho de Fernanda Ribeiro, que muitas vezes vi treinar em Paredes, quando andava no liceu (que ficava a escassos 100 metros do chamado Pavilhão Gimnodesportivo onde ela começava e acabava os treinos diários), mas por uma outra coisa.


A minha obsessão pelos jogos olímpicos começou, pode-se dizer, logo em 1980, quando nasci. Mas sob outra forma: a do urso Misha. Lembro-me de a minha mãe me oferecer um pequeno urso Misha, o que os americanos chamam agora de brinquedo «bendable» (um dos meus tipos preferidos de brinquedo), quando era muito novo. E sempre me falou do que era aquele ursinho castanho com um colete vermelho: a mascote dos jogos olímpicos de Moscovo.


Nessa altura o Muro ainda não tinha caído e eu só sabia que Moscovo era um sítio num país chamado Rússia. Uma coisa muito distante. Arranjei depois a suposta mãe e pai do Misha, outros «bendables», para completar a noção primordial de família nuclear.


A minha mãe foi de certa forma responsável por me passar esta obsessão pelos jogos olímpicos. Não porque anos depois tenhamos chamado ao nosso primeiro cão «Misha», mas porque me obrigava a passar horas na aula de ginástica em que se inscrevera, enquanto jogava freneticamente badminton. Ela foi uma verdadeira obcecada por badminton, sendo esse o primeiro desporto de raquete que conheci, mesmo antes do ténis (por que me apaixonaria anos mais tarde). Lembro-me de a ver jogar com as amigas, divertida, e depois com o professor de ginástica, competitiva. Jogou tanto que acabou por se lesionar. Hoje, o que resta desse tempo, são várias raquetes velhas de badminton, e diversos exemplares de volantes, alguns com penas e outros só de plástico.


O verdadeiro fenómeno dos jogos olímpicos só foi revelado em 1992, com os jogos olímpicos de Barcelona. Tinha 12 anos, estava na altura de entrar no espírito de competição, que até aí só tinha visto na linhagem materna. Foi o acender da chama olímpica, na sessão de abertura, por um paraplégico que atirou uma flecha incendiada com o seu arco, que me agarrou desde logo. Havia um simbolismo existencial naquele lançamento.


Entraram em cena os meus primeiros heróis reais, depois de uma longa história de heróis ficcionais (como o Heman e os agentes da série Vingadores). Passei a seguir mais do que atentamente todos os passos do nadador Aleksandr Popov e da ginasta Lilia Podkopayeva. Quando quer que a RTP2 transmitisse uma competição, eu estava colado ao ecrã.


Comprei cassetes VHS sobre os jogos olímpicos para ver o «10 perfeito» da Nadia Comaneci em 1976, Montreal, comentado pela Olga Korbut. Fiquei com a imagem farfalhuda do bigode de Mark Spitz, que nadava sem touca e fazia uma viragem sem cambalhota (factos que me chocaram inicialmente), e uma vaga noção do desafiador Jesse Owens na Alemanha nazi. Mais tarde, comecei a acompanhar as provas de Aleksey Nemov e da Franziska Van Almsick. Vi em directo, às tantas da manhã, a prova dos 10 mil metros de Atlanta 1996, em que Fernanda Ribeiro conquistou o ouro, com uma explosiva recta final: nessa noite mal consegui dormir com a excitação.


Eles foram construindo o meu mundo olímpico, com que sonhei toda a juventude. Mais tarde, entrei para a equipa de competição de natação de Paredes, e sentia-me um verdadeiro Popov dentro de água, a que chamavam o Ice-man, dada a sua calma antes das provas. Também nadava por gosto a prova dos 100 m livres, e por obrigação os 100 m estilos. Mas o máximo a que cheguei foi a algumas medalhas em estanho, com uns relevos que pretendiam simbolizar ondas, uma inscrição manhosa da classificação e respectivo lugar no pódio, e uma fita com as cores do município onde se realizava a competição. Costumo interrogar-me se teria chegado mais longe, se não me tivesse dedicado inteiramente à Medicina. Provavelmente não: de qualquer forma, não estava disposto a correr o risco.


Quem o correu, foi o filho da irmã gémea do meu pai, o ciclista Nuno Ribeiro. O meu tio paterno, ainda era mais obcecado pelo ciclismo do que a minha mãe pelo badminton. Inscreveu o meu primo em tudo o que era prova de ciclismo, treinou-o desde o berço, comprou-lhe todo o tipo de equipamentos, fez dele um ciclista nato. Só soube do seu real valor quando, em 2003, venceu a Volta a Portugal. Neste ano esteve em Pequim, na prova de estrada, e conseguiu um bom 24.º lugar. Quase poderia ter ficado com inveja.


Vanessa Fernandes, chegou-me hoje a notícia pelos auriculares do leitor portátil de MP3, venceu a medalha de prata. Portugal orgulha-se da sua atleta. Porque Portugal se revê na sua atleta. Diz ela, no noticiário da noite, que representar Portugal é uma coisa muito séria. De facto, o germe lançado na Revolução Francesa, e indispensável à justificação de um estado democrática, foi a ideia de representação. Antes disso, os reis não nos representavam como povo. Eles eram os soberanos e, portanto, governavam soberanamente. A ideia de representação política vem no pacote das ideias de estado democrático, no qual «o povo manda» e, para mandar, elege os seus representantes.


À parte a discussão de constituirmos realmente um povo ou não, sendo por isso possível ou não a representação, o facto é que nos sentimos representados: pelos nossos políticos e pelos nossos atletas. Eu, pelo menos, sinto-me.


Vanessa Fernandes foi hoje o Alexandre que sonhava, e ainda sonha, ir aos jogos olímpicos, embora nunca tenha definido a forma de o fazer: apenas tinha, e tem, a noção de que ir aos jogos olímpicos corresponderia à sua possibilidade mais radical. Vanessa Fernandes hoje cumpriu a possibilidade radical do Alexandre, por intermédio de uma representação.


Sim, hoje sinto-me de prata. Mas simultaneamente angustiado, face à noção de que os jogos olímpicos não são para mim. Não estão no meu leque de possibilidades. Não correspondem ao cumprimento possível da minha existência. E para superar isso precisarei de tempo, de muito tempo.