31 de maio de 2006

Recriação portuguesa do Funeral Blues de W. H. Auden

Blues Fúnebres

Parem todos os relógios, os telefones barulhentos,
Impeçam o cão de ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com tambores abafados
Tragam o caixão, deixem vir os enlutados.

Deixem que os aviões cirandem em lamento no apogeu
Escrevinhando no céu a mensagem Ele Morreu,
Ponham laços de crêpe em torno dos colos brancos das pombas urbes,
Deixem que os polícias sinaleiros usem luvas de algodão lúgubres.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho e o meu domingo celeste,
O meu meio-dia, a minha meia-noite, a minha palavra, a minha canção;
Pensei que o amor duraria para sempre: era uma ilusão.

As estrelas já não são desejadas; extingam-nas uma por uma;

Encaixotem a lua e tapem o sol com a bruma;
Varram os bosques e que o oceano seja vertido;
Pois nada mais pode fazer qualquer sentido.

Abril, 1936

29 de maio de 2006

Le Temps qui Reste: a angústia da morte



O tempo que resta a Romain (Melvil Poupaud) são três meses, contados a partir do momento em que o médico lhe diz ter um cancro em estado avançado e com remotas hipóteses de cura. "O Tempo que Resta" é o retrato desses três meses - e, a quem pensar que isto é a receita para um dramalhão angustiante, maníaco-depressivo ou lacrimejante, François Ozon faz a fineza de dar um valentíssimo murro no estômago. "O Tempo que Resta" é um filme enxutíssimo, seco, descarnado como o corpo de Romain em emaciamento progressivo, depurado à essência de uma vida a prazo. É a obra-prima do cineasta francês de "Sob a Areia", "8 Mulheres", "Swimming Pool" e "5x2" - porque, por uma qualquer inexplicável ironia, o seu habitual olhar distante e clínico, por vezes mordaz, está aqui intacto mas é absolutamente essencial à economia do filme.

Para ler o resto da crítica, consultar: http://cinecartaz.publico.clix.pt/criticas.asp?id=146706&Crid=49&c=3657

26 de maio de 2006

o mais belo amor do mundo é aquele que escala

«Ora, quando alguém se eleva da realidade sensível, graças à prática de amar correctamente os jovens, e começa a distinguir esse Belo de que falamos, já pouco falta para atingir a meta. E aqui tens o recto caminho pelo qual se chega ou se é conduzido por outrem aos mistérios do amor: partindo da beleza sensível em direcção a esse Belo, é sempre ascender, como que por degraus, de beleza de dois à de todos os corpos, dos corpos belos às belas ocupações e destas, à beleza dos conhecimentos até que a partir destes alcance esse tal conhecimento, que não é senão o do Belo em si e fique a conhecer, ao chegar ao termo, a realidade do Belo.»

Discurso de Diotima por Sócrates n'O Banquete de Platão.

o pecado enrolado

474: Que deveres temos em relação ao corpo?

O dever dum razoável cuidado da saúde física, da nossa e da dos outros, evitando todavia o culto do corpo e toda a espécie de excessos. Evitar o uso de estupefacientes, com gravíssimos danos para a saúde e vida humana e também o abuso dos alimentos, do álcool, do tabaco e dos remédios.

In Catecismo da Igreja Católica - Compêndio.

20 de maio de 2006

Marcelo


Marcelo Rebelo de Sousa, na conferência de encerramento do ano lectivo em MC, defendeu que os políticos podem e devem, acima de tudo, defender os seus valores éticos, nomeadamente de veia religiosa. Assim, um católico, por princípio, defenderá sempre uma posição antiaborto, não se lhe podendo acusar que «isso pertence à sua vida privada, não cabe numa discussão pública». Concordo plenamente com ele; mas, por falta de oportunidade, não lhe perguntei como resolveria o seguinte problema: Aníbal Cavaco Silva, católico reconhecido, presidente da República, recebe um decreto-lei despenalizando o aborto, aprovado na assembleia da república pela maioria PS. O que faz? Assume a sua posição católica e veta o decreto-lei; ou assume o dever democrático e aprova-o? É que tanto a religiosidade como a democracia são pilares do edifício ético...

Houve uma pergunta da assistência sobre as uniões («casamentos») homossexuais. Nesse particular, Marcelo transpareceu a ideia de que a homossexualidade é um modismo do século XX e que, por isso, não tem cabimento forçá-la para dentro da orgânica jurídica, tendo em conta o nosso conceito tradicional de família.

Ora, Marcelo parece realmente desconhecer que (1) a homossexualidade é mais velha do que Cristo (aliás, existiu desde que existem animais - sim, há animais homossexuais extensa e cuidadosamente descritos -, esses seres criados por Deus e livres do pecado original...), (2) que o nosso conceito «tradicional de família» (que, sociologicamente, nem sequer é o de família nuclear, como ele afirmou), não ultrapassa os 200 anos, e que (3) surgiu nas sociedades cristianizadas já muito tardiamente.

Basta a longa história de bastardias e filhos espúrios na nossa linhagem real católica, para percebermos que o conceito de família não era o mesmo na Renascença ou no período pré-Iluminismo, e muito menos o seria na Antiguidade Clássica. Reconheço que a nossa visão actual da família corresponde à visão cristã, mas há que admitir um pluralismo social tolerante, nomeadamente nas estruturas familiares, que não se podem restringir, nos seus moldes actuais, às populações católicas.

A sociedade europeia tem com certeza profundas raízes na matriz judaico-cristã, mas, hoje, encontra-se profundamente descristianizada. Impedindo que a tradição familiar dessa sociedade abranja o novo núcleo ateu é contribuir ainda mais para a sua descristianização, pois que esse núcleo esquecerá ainda mais as suas origens. Não podemos permitir que uma franja social ateia não possa ter a nossa estrutura familiar arquetípica, apenas porque esta teve uma origem cristã. Um equivalente para contrastar o absurdo da questão, seria dizer que num país com tradição laica, não poderia haver casamentos, de forma a se consevar a sua tradição e valores laicos. Ou que o uso da penicilina deveria ser restrito aos membros da corrente científica inscrita no iluminismo. Não tem cabimento, pois não? E se, ulteriormente, se admitisse que, afinal, na sociedade laica, já pode haver casamentos, mas só de quem não for canhoto. Estúpido, não é? Mas é precisamente a esse nível que se situa a discussão hoje em dia.

Desse modo e excelentemente, se fala hoje de «casamentos» civis. Por um lado, mantém-se a noção da casamento, união vitalícia e monogámica de dois seres com tudo o resto que lhe é inerente, coisa que não é (nem podia ser) privilégio dos católicos. Por outro, não se aboliu a palavra 'casamento' de forma a conservar-se, com o devido respeito, a sua origem.

Usando estes dados, não é muito difícil chegar-se à conclusão que, de facto, existe e deve existir uma instituição denominada 'casamento civil' a qual deve abranger todas os sectores sociais, desde homossexuais a divorciados, ateus e hindus. Digamos que, como se fosse matéria de propriedade intelectual, o conceito de casamento já passou ao domínio público. E, neste domínio, é profundamente injusto reservá-lo às facções heterossexuais em nome da tradição cristã. Se já demos o passo de alargá-lo a ateus, porquê conservar restricções tacanhas?

No século XXI, ter uma família legalmente constituída ainda não é um direito fundamental de todos, mas uma espécide de «privilégio» de alguns. Numa sociedade democrática, todos os cidadão deveriam ter direitos equivalentes. Reservá-los a certas situações em nome de biologia (como fez o autor da pergunta e que é um perfeito disparate, pois ainda não se esclareceu qualquer biologia na homossexualidade e, pelos mesmos dúbios trâmites lógicos, chegaríamos à conclusão de que um casal infértil desde a nascença também não poderia casar), em nome de tradicionalismo (revelando abissais lacunas de conhecimento sociológico) ou em nome de qualquer outra coisa, é uma tacanhez e um atavismo sem nome.

Muitas outras perspectivas de argumentação se poderiam perfilar, nomeadamente o dever de amoralidade estadual, mas que, por agora, me abstenho de interessar à discussão.

19 de maio de 2006

How do I love thee?

How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and Ideal Grace.

1.ª estrofe do soneto XLIII de Sonnets from the Portuguese, de Elizabeth Barrett Browning

13 de maio de 2006

Post mortem nil est

A esperança de ser depois da morte funda-se no amor de ser durante a vida; é fundada sobre a probabilidade de que o que pensa pensará. Disso não há qualquer demonstração, porque uma coisa demonstrada é uma coisa cujo contrário é uma contradição, e porque nunca houve disputa sobre as verdades demonstradas. Lucrécio, para destruir esta esperança, apresenta, no seu terceiro livro, argumentos cuja força aflige; mas não opõe senão verosimilhanças a verosimilhanças mais fortes. Vários Romanos pensavam como Lucrécio; e num teatro de Roma cantava-se: Post mortem nil est, «nada existe após a morte». Mas o instinto, a razão, a necessidade de ser consolado, o bem da sociedade, prevaleceram e os homens sempre tiveram a esperança de uma vida futura; esperança, na verdade, muitas vezes acompanhada pela dúvida. A revelação destrói a dúvida e põe a certeza em seu lugar.

Nota de Voltaire ao Poème Sur Le Désastre de Lisbonne

Também como os campeões...

Também como os campeões gregos, devemos, hoje, apostar tudo - arriscar - para alcançar a vitória máxima, que em contraste com a outra, admite vários vencedores; a alternativa, quando não se acha a via recta, é perder tudo para a infâmia e danação. Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura, / ché la diritta via era smarrita. Dante desceu e percorreu os nove círculos do Inferno, tendo perdido la diritta via. O problema está na aferição da rectidão da via? Com esse fim, proponho o uso da consciência, pois só isso, e nada mais do que isso, nos garante a veracidade da hipostasia do Deus que nos habita por um instante.

A glória na Grécia antiga



«Para Píndaro não há empates. O acontecimento fundamental da vida é a vitória. Não basta por isso a mera participação. Toda a disputa é individual. Não há desportos de equipa na antiga Grécia. Cada competidor está sozinho, mesmo quando representa uma casa, uma família, uma aldeia, uma cidade ou uma nação. Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, uma identificação e, assim, um "lugar" para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. Ao vencer-se é-se maior do que se era. É-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também não quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si. Desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame.»


In
prefácio por António Caeiro às ODES PÍTICAS para os vencedores, de Píndaro.