30 de março de 2006

Galinha

Era uma vez uma galinha que vivia num galinheiro. Ela passava o dia a raspar o chão com as patas caquéticas e ictéricas a ver se achava minhocas. Mal via uma mais a descoberto, mais indefesa, ainda humedecida pelo orvalho matinal − zumba − debicava-a e engolia-a. Não a podia mastigar, pois é facto sobejamente conhecido que as galinhas não têm dentes. A minhoca entrava então na moela da galinha, começava a ser soqueada por todos os lados, porque esse é o estômago mecânico do galináceo, ao qual se segue o estômago químico. Dentro em pouco, a minhoca era digerida e absorvida pela galinha, passando a fazer parte do seu próprio organismo − a minhoca era agora galinha.

As galinhas são estúpidas em toda a propriedade do termo. Todos sabemos isso, e esta afirmação universal em particular não é uma falácia. As galinhas têm uma visão bidimensional, pois possuem um olho em cada lado de uma cabeça em quilha, cujos campos visuais não se sobrepõem. A galinha não tem, devido a esse facto, a capacidade de integrar imagens num córtex visual, de forma a ver a três dimensões. Para a galinha as outras galinhas são adversárias, mas é só entre elas que se sente bem. Tem o corpo coberto de penas e uma crista vermelha na cabeça, que serve para abanar quando corre de uma lado para o outro no seu jeito ridículo; e para tentar ameaçar os seres inferiores a elas.

Essa galinha de que estávamos a falar cacarejava todo o dia − ca ca ca − mas achava-se entendida e entendedora de tudo. Ela fugia ao confronto directo com o lince ou o furão, mas, nas suas costas, ia cacarejando «− Ele só sabe é miar. Mia mia mia... mas não percebe nada de nada, ca ca ca. A mim nunca me há-de apanhar, ca ca ca!» A galinha, por ser galinha, não tinha noção do ridículo que havia em si nem da sua função última de servilismo culinário. Secretamente, sabia que se enfrentasse o lince, seria comida por ele. Certo dia veio um homem com uma faca e Zás!, cortou-lhe a cabeça e ela, ca ca ca, continuou a espernejar e a correr de forma tonta, cega, decapitada, até finalmente tombar as penas na terra suja e ser posteriormente servida à mesa numa bandeja de louça branca, enfeitada com pequenas tiras de papel e condimentada com ketchup. No final da refeição houve alguém que comentou: «Que carne tão dura e seca».

25 de março de 2006

Marilyn

Virei as costas e caminhei pela penumbra da rua húmida. Já era tarde e essa fora a sua desculpa. Marilyn despedira-me novamente, queria ir dormir. Já eram passados alguns anos depois do Gentlemen Prefer Blondes e o seu êxtase, reflectido outrora no louro platinado do cabelo, desaparecera completamente e tinha dado lugar ao desespero. Afinal, Hollywood não era nem a resposta, nem a vocação. Marilyn perseguira o estrelato depois de ter levado uma vida mísera como operária fabril. Fora o desencanto com esta vida o móbil da sua fuga; e as luzes da ribalta, falsas estrelas, ofuscaram os seus olhos simples. O fausto tem o condão de seduzir e tornar as almas mais pequenas. Marilyn percebera isto ao fim de algum tempo e tentou trazer algum sentido e dignidade à sua vida através da inscrição no Actors Studio. Conseguiu uma personalidade minimamente estruturada através da amizade e identificação com o também misfit Montgomery Clift e isso deu-lhe um pressentimento e sede de ideias. Mas a falta de preparação para enfrentar a retórica manhosa de Arthur Miller, levou-a ao altar e, mais tarde, ao álcool e drogas. Inevitavelmente, é isto que acontece a quem cede a dialogar com o mal.

Deixei-a ali sentada na poltrona de veludo vermelho enleada num quimono de seda branca, olhando-me pelas olheiras exaustas e certamente pensando que estava a fazer o que achava melhor − a única forma de agir possível nas circunstâncias vitais a que chegara. Marilyn não soube aproveitar a bóia de salvação dos Kennedy, nem soube aproveitar a minha dedicação e preocupação. Queria que desabafasse sobre o seu despedimento do Something’s Got to Give, mas ela, amedrontada e aconselhada em contrário, não abria a boca sobre que lhe percorria a mente torturada. Marilyn estava perfeitamente controlada como uma marioneta e era incapaz de reagir por si. Tinha finalmente consciencializado isso. Marilyn nunca acordou dessa noite de suicídio.

20 de março de 2006

Nu

não é.............................................
...........lírios no canteiro do sono
......................................................

Os botões

«-A pena de morte é a única solução para muitos casos. E o próprio juiz e o júri é que carregam, todos ao mesmo tempo, nos botões e um deles liquida o condenado».

Pior é aquele que, sabendo dos seus erros, não os corrige

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca

14 de março de 2006

Os insossos

Há uns tempos discutia-se à refeição qual a forma correcta de escrever: insosso, insonso, insosso ou insonso.

Para descobrir a forma correcta, temos primeiro de aplicar as boas regras da retórica e começar por definir o objecto.

O insosso é aquela pessoa que usa a palavra «indivíduo» e age numa gama de humor que vai do sorriso amarelo ao ar superiorizado de sopeira ao atender o carteiro quando o patrão saiu para o trabalho.

Corta o cabelo sempre no mesmíssimo sítio há vários anos, que por sinal é está no top 10 do mais baratucho/seboso num raio de 30 km em todas as direcções.

O insosso, quando tem um laivo de si próprio, usa expressões como «curtir», «totó», «vamos pr’a night» e age como se não fosse ele o insosso, mas os outros, quando lhe vem a pica uma ou duas vezes por ano para sair à noite. De resto, a diversão máxima que consegue conceber no quotidiano quadrado que leva é sair depois do jantar para beber umas cervejas (a que chama afectuosamente ‘bejecas’) com os amigos, que, por conceberem uma mundivisão símile, também se definem como insossos.

Quando tem a rara oportunidade de se ver ao espelho, e não apenas de o olhar todas as manhãs para ver se a barba está bem aparada (Deus o livre do desleixo!), decide deixar crescer umas cerdas faciais, a que chama pêra, para finalmente deixar alguma novidade entrar na sua vida. Como o seu humor é restrito como as sarjetas de Lisboa após uma chuvada, faz má cara a quem tente brincar com o novo aparato facial.

Nos demais dias, acorda cedo e deita-se cedo, sempre rumorejando no vácuo existencial que espelha o deserto dos seus pensamentos. A sua vida, do nascimento à morte, há-de ser rotina insípida e ridícula, passando-lhe sempre ao lado anos e anos de fervor, furor e ferocidade apaixonada.

A sua corrente de consciência é um ribeirozeco, porque sempre idêntica, na forma e pseudoconteúdo e inflexibilidade. Os seus erros são os mesmos porque ele é incapaz de aprender (afinal, já sabe tudo...) Está sempre certo e os outros sempre errados. Para o insosso é perfeitamente lógico que a maioria das pessoas esteja errada e ele (juntamente com meia-dúzia de outros insossos) certo. Jamais será capaz de discutir, porque nesse espaço é necessário que haja confronto de ideias e o insosso não as tem, apesar de chamar ideias aos seus preconceitos e suas às ideias dos outros.

O insosso tem muitas vezes crises de meia-idade, quando a vida, farta da sua própria monotonia, lhe espalha na cara o tédio e o erro que tem sido.

O insosso, quando chega à velhice, faz muitas viagens de terceira idade, visitando aquilo que já há muito deveria ter sido visitado. A sua necessidade cultural nunca passou dos leads jornalísticos. Os seus ídolos são pessoas do seu próprio circulozinho, nunca configurando que se possa ser mais inteligente do que o seu próprio chefe.

O insosso, quando faz uma caminhada, reitera inúmeras vezes a sua concentração sanguínea de testosterona, afirmando a facilidade do seu desempenho, mesmo que se esteja a borrar todo.

O insosso até pode ler, mas é sempre algum autor de que ouviu falar nas aulas de liceu ou no banco dos santuários; ou então o Destak®. Sempre que passa os olhos em público pelas fotografias desse diário, levanta-os de seguida com o ar de académico de Cambridge. Aliás, ele raramente usa a palavra autor, preferindo sempre a designação ‘escritor’. Ficcionista é coisa que não existe no seu idiolecto.

O mais evoluído e supra literaturesco que atinge é Milan Kundera ou Eça de Queirós. Obviamente, é incapaz de criar neologismos ou divertir-se com paronomásias.

O insosso acha que dobrar as consoantes dos nomes próprios é chique, e não simplesmente um erro ortográfico da classe monárquica analfabeta, que quis manter os erros da ortografia antiga. Claro que o insosso nunca, mas nunca, ouviu falar do acordo ortográfico de 1945.

Assim sendo, apenas podemos admitir que o insosso não se pode escrever com o e- de feroz, o e- de erudito, o e- de elegante. Tem de se iniciar pelo i- de incapaz, inútil e inábil. Além disso, deve ter o n- bem nasalado e lento a prolongar pelo nariz as ironias de meia-tijela que consegue arremessar num acto que considera no mínimo triunfante e de elevada dificuldade intelectual, antes que, também pelo nariz, lhe saia um jorro de água e batata cozida, quando se engasga no cozido à portuguesa que ataca segurando o garfo por cima.


for the happy few

«mr. bogus (small edit)

"ao x e ao y". O z perdeu-se da equação, e verificou-se que ela resulta sem mim. A matemática nem sempre é tão exacta quanto queria, fora do seu meio descontextualizado que responsabilizei pelo meu sucesso não tão grande na disciplina. Também convenhamos que estamos a falar pouco de uma equação, ou de várias, e mais de inequidades múltiplas. Parece que já não só falo durante o sono, como também envio anúncios para jornais enquanto durmo:

"Oferece-se amigo imaginário. Vai lá estar sempre que estiver sozinho, com a garantia que na presença de outros desaparecerá, para que não o achem esquizofrénico, e não pedirá nada em troca quando quiser concluir que ele nunca existiu. Experiência não é necessária."

Recebo respostas todos os anos. E todos os anos sou mais lançado à liberdade da pouca existência, que guardado no speed dial. O único que ainda não dispensou os meus serviços, e me vê ao seu lado no espelho todos os dias a lavar-lhe a cara, sou eu. Então ainda existo.»

ti


Em busca das estrelas perdidas... Sophia




Após algum período de recolhimento, o GE tem o prazer de mostrar as novidades paparazzi. Sophia de Mello Breyner Andresen foi apanhada a comprar postais de natal no oratório da Palma de Baixo. Naturalmente, sendo uma musa frequente do autor deste blogue, tal acontecimento não poderia passar em branco. Congregando na sua poesia as finalidades do homem na terra (razão, amor e beleza), Sophia harmonizou o ideal da beleza helénica com a racionalidade que a levou a ser deputada numa época com necessidade de intervenção social pelas elites (época que se está a reiniciar... se ao menos houvesse elites pensantes...) e o amor à arte, sobretudo quando subcriativa deixando pressentir a criativa.

11 de março de 2006

Ricardo in memés land

Contactada a omnisciente-albicastrense-missy-knows-it-all, a prof. de história mais comentada na cena tertuliana mciana cedeu-nos a primeira foto do seu aluno mais-que-tudo, Ricardo Marcelo. De notar, o tique de levantar o beiço superior de forma a mostrar as sacholas dentárias. E ainda fala do tique capilar de outros...

One should always be a little improbable

Lullaby song



Lullaby song
A sheep does not go to heaven / just because it chooses to be a sheep. / In that liberty there is conviction, / 'Cause they never earn their merits / or golden stars.


10 de março de 2006

Babilónia

Com pátios interiores e com palmeiras
Com muros de tijolo com pequenos tanques
Com fontes com estátuas com colunas
Com deuses desenhados nas paredes de barro

Com corredores e silêncio e penumbras
Com vestidos de linho tocando a pedra pura
Com cinamomo e nardo
Com jarras donde corria azeite e vinho

Com multidões com gritos com mercados
Com esteiras claras sob os pés pintados
Com escribas com magos e adivinhos
Com prisioneiros com servos com escravos
Com lucidez feroz com amargura
Com ciência e arte
Com desprezo
Babilónia nasceu de todo o limo

Sophia, Grades

Indo à fonte do bom senso em que aprendemos com os próprios erros ('a história tende a repetir-se'), gloso Goethe a este Babilónia:
Quem não sabe prestar contas
De três milénios
Permanece nas trevas ignorante,
E vive o dia que passa.


Conversas para lá da porta

O velho abutre

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.

Sophia, Grades